Vitrines bonitas escondem realidades cruéis
- Bárbara Bento
- 18 de out. de 2021
- 10 min de leitura
Setor ainda lucra com a escravidão contemporânea, o que possibilita a permanência do crime que viola os direitos humanos

Na indústria da moda, o debate sobre a necessidade de aniquilar o trabalho análogo à escravidão é antigo. O assunto começou a ser pautado no setor ainda nos anos 1990, ganhando forte repercussão em 1996, quando a - extinta - revista americana "Life'' publicou a foto de um menino paquistanês costurando bolas de futebol vendidas pela Nike.
Na virada do milênio, o assunto continuou em ascensão e chamou a atenção mundial após o desabamento do edifício Rana Plaza, que abrigava fábricas têxteis nas quais os funcionários trabalhavam em condições análogas à escravidão, em Savar, periferia da cidade de Dhaka, capital de Bangladesh.
Em 24 de abril de 2013, o edifício de oito andares que alojava confecções que produziam peças para famosas marcas ocidentais como H&M e Primark, desmoronou pouco tempo após apresentar rachaduras na estrutura, causando a morte de mais de 1.300 trabalhadores e ferindo mais de 2.500 pessoas.
Grande parte das vítimas eram mulheres que compunham majoritariamente a mão de obra das oficinas, trabalhando por longas jornadas ininterruptas para ganhar "salários" muito baixos. A tragédia ajudou a escancarar esse problema invisível para a sociedade e para o qual a indústria da moda faz “vista grossa”.

Embora a conversa seja antiga, poucas são as medidas que surtiram efeitos concretos para dizimar o crime que viola os direitos humanos, e que, infelizmente, ainda é realidade em muitos países ao redor do globo, com índices mais elevados, principalmente, em nações mais pobres.
Por que a indústria da moda ainda é conivente com o trabalho escravo?
De acordo com Lívia Monteiro, gestora cultural e representante do Fashion Revolution - movimento global que une profissionais da moda em prol de mudanças positivas no setor - em Belo Horizonte, a prática ainda é constante no meio da moda em decorrência do sistema capitalista, no qual as empresas visam apenas o lucro a todo custo e um lucro alto obtido de forma desonesta.
“A ostentação ainda é a palavra chave. A mesma empresa que paga 50 centavos [pela fabricação de] uma blusa que será vendida por 300 reais vai pagar 100 mil para uma influencer ser fotografada com essa mesma blusa. Infelizmente, é preciso admitir que isso é muito lucrativo para a indústria da moda”, expõe.
A representante do Fashion Revolution em BH, também ressalta que os preços baixos das peças vendidas e a ineficácia de fiscalização dos órgãos responsáveis, são alguns dos fatores que propiciam a persistência do crime no cenário da moda nacional e internacional.
“As pessoas querem que o trabalho escravo não exista, mas querem continuar pagando um preço muito baixo pelas roupas e acessórios. As empresas querem pagar pouco nas peças para ter um alto lucro. Assim, essas marcas negociam de forma desleal incitando os donos das fábricas a fazerem uma “competição” de preços baixos para não perderem o cliente. Outro fator é a falta de fiscalização adequada, e apesar de estar no nosso imaginário que isso acontece em outros países como China ou Bangladesh, aqui mesmo no Brasil situações semelhantes a essa também acontecem”, explica Lívia.
Indústria da moda está entre os cinco setores que mais utilizam da mão de obra escrava
Um relatório produzido pela Walk Free, organização independente internacional que atua na defesa dos direitos humanos, revelou que a categoria “vestimenta” ocupa o segundo lugar do ranking que mapeia os cinco tipos de produtos que mais utilizam mão de obra escrava contemporânea para fabricação, sendo responsável por gerar quase 130 bilhões de dólares em produtos feitos por meio da violação dos direitos humanos e trabalhistas.
A posição só denota que o setor da moda ainda é um grande vilão no que tange ao respeito e cumprimento dos direitos humanos e trabalhistas. A análise também apontou que os países integrantes do G20 estão suscetíveis a importar, juntos, mais de 350 bilhões de dólares em produtos fabricados com a utilização de força de trabalho análogo à escravidão.
O relatório também aponta que apenas sete países que compõem o G20 - grupo de nações que juntas representam 80% da economia mundial - apresentam atitudes de combate ao trabalho escravo contemporâneo. São eles: Brasil, China, França, Alemanha, Itália, Estados Unidos e Reino Unido.
O restante dos países que integram o G20 - Argentina, Canadá, Índia, Indonesia, Japão, México, Rússia, África do Sul, Árabia Saudita, Córeia do Sul e Turquia - não apresentam medidas de combate ao trabalho análogo à escravidão. No entanto, a lista de países que não apresentam medidas de combate à prática conta com uma exceção: a Austrália. Segundo o relatório, o país se comprometeu a introduzir leis para coibir o crime que entraram em vigor em meados de 2018.
Aplicativo monitora ocorrências de trabalho escravo contemporâneo no setor da moda brasileira
Em 2013, a Repórter Brasil lançou o aplicativo “Moda Livre”, que serve como uma ferramenta de avaliação e monitoramento das atitudes adotadas pelas empresas de moda (e marcas não exclusivas de moda, mas que também comercializam roupas) para coibir o trabalho análogo à escravidão no país.
Dentro da plataforma, as marcas, cadastradas pela equipe da Repórter Brasil, são ranqueadas com base nas respostas fornecidas por meio de um questionário, que visa verificar a existência e grau de eficácia das medidas adotadas pelas empresas para impedir a ocorrência do crime em seus negócios. Ao todo 123 marcas - entre nacionais e internacionais com atuação no setor brasileiro de moda - estão cadastradas no aplicativo.
Conheça a metodologia do Moda Livre
Fonte: Moda Livre
Os Dados do Moda Livre
As marcas que não apresentaram medidas para o combate ao trabalho análogo à escravidão representam 35% do total de marcas cadastradas. Já as marcas que apresentaram medidas, mas com pontos falhos e histórico desfavorável devido a flagrantes em fiscalizações governamentais, também representam 35% do total de marcas cadastradas.
Fonte: Moda Livre
Somente 17% das empresas são bem avaliadas na plataforma, porque apresentaram medidas satisfatórias de combate ao trabalho análogo à escravidão na própria cadeia produtiva ou em serviços terceirizados. Dentre elas estão as três maiores lojas de departamento de moda do mercado brasileiro: Riachuelo, Renner e C&A, junto a marcas internacionais como Adidas, Calvin Klein e Reebok.
Outro importante dado fornecido pelo aplicativo é o de marcas cadastradas, mas que ainda não responderam o questionário de avaliação, documento fundamental para que o rankeamento da empresa seja feito na plataforma.
Atualmente 14 empresas estão sinalizadas com questionário pendente. Essas empresas permanecem com a “reputação indefinida” pelos seis primeiros meses após o envio do questionário. Passado esse tempo, sem que o documento seja respondido e entregue as empresas são automaticamente adicionadas na parte da lista de marcas que são coniventes com o trabalho análogo à escravidão.
Da tríade das grandes marcas de moda com abrangência nacional, a Riachuelo é a mais bem posicionada no ranking. Ocupando a 3ª posição geral, a empresa obteve 4.045 pontos dos máximos 4.700 que compõem o sistema de pontuação da plataforma. A C&A vem logo atrás da Riachuelo, ocupando a 4ª posição no ranking geral, com 4.020 pontos. Já a Renner ficou bem atrás das duas maiores concorrentes, ocupando a 20ª posição, como resultado dos 3.625 pontos que conseguiu na avaliação.
Apesar da Renner estar na parte favorável do ranking, ela perdeu 200 pontos no quesito “Histórico”, porque 37 bolivianos foram encontrados trabalhando em condições análogas à escravidão, durante fiscalização das autoridades em uma oficina de costura terceirizada, localizada na capital São Paulo, em novembro de 2014.
São Paulo: Polo do trabalho análogo à escravidão na moda nacional
No Brasil, a cidade de São Paulo concentra os casos de trabalho escravo contemporâneo na moda pelo fato de ser o polo da produção de moda no país. Dados da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), revelam que em 2019, 35 pessoas que trabalhavam em oficinas clandestinas foram resgatadas do trabalho escravo, na cidade de São Paulo. Em 2020 esse número caiu para 15 pessoas resgatadas. O total de resgatados de 2010 a 2020 é de 325 pessoas.
A auditora fiscal do trabalho de São Paulo, Lívia Ferreira, que coordena há mais de dez anos um grupo de fiscais do trabalho que atuam exclusivamente no combate ao trabalho escravo contemporâneo na moda, conta que as denúncias de casos na capital paulista ocorrem com frequência desde a década de 90.
Segundo Lívia, as denúncias começaram nessa época, devido ao grande período migratório de pessoas em situação de vulnerabilidade nos países vizinhos da América do Sul para São Paulo, em busca de melhores oportunidades de emprego e vida, mas que acabam escravizados em oficinas de costura.
A fiscal aponta algumas características que compõem o perfil dos escravizados no setor da moda, em São Paulo:
“As vítimas geralmente são de regiões pobres de países como Peru, Bolívia, região dos Andes. Costumam ser de etnia indígena e muito jovens, na faixa dos 20 anos, com pouca escolarização, somente ensino fundamental ou começo do ensino médio, mas todos são letrados. E não há predominância de gênero”, indica. Lívia ainda explica que contratar casais (românticos) é uma prática muito utilizada entre os donos das oficinas. Assim, a produção é maior e o pagamento é único feito de acordo com o total de serviço prestado pelas duas pessoas.

Ainda de acordo com a auditora, as vítimas sempre são resgatadas em oficinas de costura que funcionam dentro de casas, que agora se concentram nas periferias do centro de São Paulo e não em bairros como Brás e Bom Retiro, famosos pela venda de roupas. “Distritos dentro das Zonas Leste e Norte é onde se localizam os bairros quase inteiros onde eles vivem e trabalham escravizados dentro das casas. Guarulhos também tem muita oficina com trabalhador escravo”, conta.
Lívia explica que essa mudança na localização das oficinas com trabalhadores escravizados começou em 2010, quando as fiscalizações se intensificaram, e que ela pode ser uma tentativa dos proprietários das oficinas de fugirem das fiscalizações, além de um dos resultados da gentrificação da cidade. “Suspeito que seja pelas zonas serem periféricas e, consequentemente, os aluguéis serem mais baratos. O Bom Retiro e o Brás ficaram mais visados, mais caros para se viver. E também para ficar mais longe da fiscalização que antes se concentrava no Brás e Bom Retiro”, analisa.
Desigualdade social é fator vantajoso para ocorrência do trabalho escravo contemporâneo
O relatório com dados sobre o trabalho escravo contemporâneo no mundo, produzido pela Walk Free, expõe que o crime é uma realidade presente em todos os países dos cinco continentes (habitáveis). As únicas diferenças estão na quantidade de pessoas em trabalhos análogos à escravidão que cada país apresenta, na existência (ou não) de medidas para o combate ao crime e no grau de eficácia dessas medidas.
Mesmo a escravidão contemporânea sendo presente em todos os países, pelo relatório é possível constatar que os índices mais altos do crime se concentram, em níveis mais alarmantes, em países que são ex-colônias.

No ranking da América, o Brasil está posicionado no final ocupando a 20ª posição entre os países da América que mais têm pessoas em condições de trabalho análogo à escravidão. Apesar da posição ser positiva, estima-se que 369 mil pessoas sejam vítimas do trabalho análogo à escravidão no país, o que não deixa de ser um número alto.
Embora não haja dados específicos sobre o trabalho análogo à escravidão na moda, no Brasil, a exposição de marcas que foram flagradas compactuando com o crime em território nacional não deixa espaço para dúvidas de que o crime também está presente na cadeia produtiva da moda nacional.
Para Lívia Monteiro, gestora cultural e representante do Fashion Revolution em Belo Horizonte, o trabalho análogo à escravidão é mais presente em países pobres, cuja maioria é ex-colônia, por apresentar maior desigualdade social e econômica.
"Essa prática é mais comum em países subdesenvolvidos, porque neles existem pessoas em situação de miséria e que estão sujeitas a aceitar qualquer situação, inclusive a de trabalhar apenas por um lugar para morar e alimentação. Os colonizadores criaram uma cultura nesses países, a cultura da necessidade. Levaram as principais riquezas e transformaram esses países em espaços de exploração para se auto enriquecer", observa.
No artigo “A Permanência do Trabalho Escravo no Brasil no Setor da Produção de Roupas no Brasil no Século XXI: Da Moda da Escravidão à Escravidão da moda”, os autores Bruno Cunha, Lucas Galvaniz e Jacqueline Alves, evidenciam que a mentalidade escravista do período colonial brasileiro se mantém até a atualidade, propiciando a ocorrência do trabalho análogo à escravidão em diversos setores econômicos.
Segundo os autores, "A mentalidade escravagista no Brasil é de longa duração, e esta mentalidade persiste nos dias atuais gerando uma escravidão sob nova roupagem (inclusive em setores de grande destaque, como na moda), haja vista que é possível conectar suas origens ao trabalho escravo experimentado no Brasil dos séculos anteriores".
Fiscalização sofre obstáculos
As ações estatais de combate ao trabalho escravo contemporâneo começaram em 1995, ano em que o Brasil reconheceu a existência do crime devido ao caso de escravização de José Pereira, ocorrida entre 1987 a 1989, na Fazenda Espírito Santo, em Sapucaia (Pará). Desde então o país é considerado exemplo na erradicação do crime, mas nos últimos anos a fiscalização, ferramenta indispensável no combate ao crime, está sucateada.
Hoje, o Brasil tem pouco mais de dois mil auditores fiscais do trabalho, quantidade insuficiente de profissionais para garantir a vigência da legislação trabalhista e combater o trabalho escravo contemporâneo, dada a dimensão territorial e populacional do país.
O motivo para o contingente desses profissionais ser tão baixo, se deve a inexistência de concursos públicos para o cargo, há quase dez anos. O último foi em 2013, quando o país contava com aproximadamente três mil auditores fiscais.
A consequência direta da falta de concursos públicos para o cargo é a acelerada diminuição de auditores na ativa, já que os antigos na profissão se aposentam mas não existe a “reposição” do profissional.
O chefe da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (DETRAE), Maurício Krepsky, que está na profissão há sete anos, revela que passou no último concurso realizado para o cargo de auditor fiscal. “Eu sou do último concurso, então acabo sendo o novato da profissão mas já trabalho na área há sete anos. O concurso ocorria de três em três anos, mas desde 2013 não existe mais. Então a categoria envelhece, as pessoas se aposentam e assim o número só vai diminuindo”, conta.
Criminalização e direitos das vítimas
Desde 1940 o Brasil criminaliza o trabalho análogo à escravidão. Até o começo da primeira década dos anos 2000, essa criminalização era feita através da lei 2.848 presente no artigo 149 do Código Penal, mas a partir de 2003 o Código Penal foi alterado pela Lei n.º 10.803, que passou a definir especificamente as situações - jornadas exaustivas; trabalho forçado e restrição do direito de locomoção do empregado - que caracterizam o trabalho escravo contemporâneo.
A lei estabelece três tipos de punição para quem comete o crime: encarceramento, multa e ação civil pública movida pelo Ministério Público do Trabalho visando indenização por danos morais à vítima.
Em caso de encarceramento a sentença pode variar de 2 a 8 anos de prisão e a pena ainda pode ser aumentada em metade do tempo total a ser cumprido, caso a pessoa culpada tenha utilizado mão de obra análoga à escravidão infantil ou adolescente, ou ainda se o crime ocorrer devido a preconceitos de raça, cor, etnia, religião ou origem. Já as multas são aplicadas pelos próprios auditores fiscais em caso de flagrantes de trabalho análogo à escravidão, durante inspeções.
Segundo a advogada trabalhista e professora de direito da Nova Faculdade, Marcelle Mamede, as pessoas vítimas da exploração da mão de obra escrava contemporânea têm direito a receber todos os benefícios trabalhistas referentes ao tempo em que foram submetidas a tal situação.
“Essas pessoas têm direito à assinatura da carteira de trabalho e o recebimento dos salários de todo o período escravizado, além dos demais direitos trabalhistas previstos na Constituição federal, pelas leis que compõem a Consolidação das Leis do Trabalho e convenções coletivas da categoria profissional. Elas também têm direito ao recebimento do seguro desemprego e, em alguns casos, podem ser integradas em programas de inserção social do poder público ou de entidades privadas, até mesmo como medida para evitar que elas sejam vítimas novamente. Além disso, o Ministério Público do Trabalho poderá mover uma ação civil pública com o objetivo de obter indenizações por danos morais às vítimas da escravização”, explica a advogada.
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