Onde está a diversidade na moda?
- Bárbara Bento
- 5 de out. de 2021
- 11 min de leitura
Avanços são notáveis, mas caminho para moda plural ainda é longo

Em junho de 2020, a hashtag #PullUpOrShutUp passou a ser usada por ativistas do movimento Black Lives Matter como ferramenta de reivindicação para que grandes marcas - principalmente do ramo da moda e beleza - expusessem as estatísticas da diversidade de seus quadros de funcionários, incluindo cargos de liderança.
A intenção de usar a hashtag - que já existia - para que as marcas divulgassem tais informações partiu da empresária afro-americana Sharon Chuter, fundadora e CEO da empresa de beleza Uoma Beauty.
A mobilização aconteceu depois que um policial branco assassinou o afro-americano George Floyd, em maio de 2020, na tentativa de chamar a atenção das marcas para adotarem uma postura ativista e política prática, para além dos quadrados pretos postados por usuários do Instagram - inclusive empresas e famosos - acompanhado das hashtags #BlackLivesMatter e #BlackOutTuesday, como forma de protestar e dar visibilidade para a luta pelo respeito a vida e direitos de afro-americanos.

Grandes marcas de beleza e gigantes do streetwear, como Nike e Adidas, revelaram estatísticas mas, até setembro de 2021, nenhuma marca de alta costura forneceu dados. Essa iniciativa de pressionar as marcas é apenas um dos exemplos de mobilizações em prol de mudanças sociais no universo da moda e para além dele. A diversidade é uma demanda muito cobrada por vários grupos sociais na atualidade, já que esse valor ainda é pouco abraçado pelas marcas de moda ou somente quando convém.
Padrão impede diversidade
Historicamente, social e culturalmente, os padrões de beleza objetificam mulheres, que passam a ter seu valor reconhecido - ou não - exclusivamente pela beleza. Esses códigos de beleza são criados a partir da combinação entre características de determinados biotipos com traços específicos de outros, a fim de estabelecer a “beleza perfeita” - o que nada mais é que uma aparência inalcançável em sua totalidade - e, quando alcançável, difícil de manter - além de excludente com quem não se encaixa nela.
Eles variam de civilização para civilização e de época para época - pode haver, inclusive, coexistência de mais de um padrão em um mesmo período de tempo - em que cada uma estabelece um código específico do que é considerado belo.
Por estar inserida na sociedade, a moda exerce um papel duplo com relação aos padrões. Ao mesmo tempo em que ela se utiliza desse código - reforçando a aceitação e permanência dele - para vender, ela também institui novos padrões, junto a outros componentes da mídia, como o cinema, a publicidade e mais recentemente, as mídias sociais.
Esse papel da moda pode ser percebido através da mudança de padrão liderada por ela na transição dos anos 1980 para os 1990. Foi nessa época que o corpo magro e reto, quase sem curvas, “inspirado” nos biotipos de Top Models como Naomi Campbell e Kate Moss, passou a ser o padrão estético ocidental. Tal padrão é muito difundido entre modelos até hoje, e estendeu-se para as outras mulheres da sociedade, proporcionando problemas de autoimagem, e doenças como bulimia, anorexia e transtornos mentais.
Vanessa Costa, jornalista e doutora em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que pesquisa como se dá a representatividade em capas de revistas femininas, conta que em suas pesquisas sempre observou que o corpo presente nas capas de revistas eram aqueles que estavam de acordo com o padrão: “Branco, magro e jovem”. Ela também salienta que quando a capa estampava alguém fora do padrão, essa pessoa correspondia a uma ou duas características que compõem o padrão, sendo magra e jovem. “Tem sempre a predominância de outras características do padrão.” aponta Vanessa.
Temos representatividade ou visibilidade?
Vanessa Costa aponta que existe diferença entre representatividade e visibilidade. A visibilidade ocorre quando pessoas pertencentes a grupos sub-representados na sociedade ocupam espaços de evidência na mídia, geralmente, para falar sobre assuntos referentes ao grupo que pertencem. Já a representatividade acontece quando pessoas pertencentes a esses grupos estão constantemente ocupando espaços de evidência para abordar diversos temas, para além dos temas intrínsecos ao grupo social ao qual elas fazem parte.
“O fato de conferir a visibilidade não garante representatividade, porque é possível escolher o tipo de visibilidade que você vai dar”, comenta.
Como exemplo, a pesquisadora relembra uma capa da revista feminina TPM, de setembro de 2013, que estampa a cantora Preta Gil e teve como matéria principal o tema "Comida & Culpa - Por que nossa relação com comida é tão neurótica?". A matéria ainda trazia “justificativas” que tentavam “amenizar” o fato de Preta ser uma mulher gorda, com frases como: “ela está gorda, mas está saudável”.

A pesquisadora classifica o exemplo como um caso de visibilidade e não de representatividade, porque reitera a gordofobia e a noção equivocada de que pessoas gordas só podem falar de assuntos relacionados à comida e ao peso.
“Você pode dar visibilidade, mas esse texto pode ser super desrespeitoso ou limitante com as pessoas, e isso não é representatividade. Eu acho limitante trazer mulheres trans [em capas de revistas] só no mês da visibilidade, mas não quer dizer que seja algo desnecessário, mas esse texto também não pode ser desrespeitoso e ser sempre só sobre o mesmo assunto.” ressalta.
Obstáculos para a diversidade
Vanessa elenca três motivos indispensáveis que regulam o avanço ou retrocesso da representatividade nas capas de revistas femininas. O primeiro são as questões de mercado como as vendas da revista. O segundo é o “atendimento” aos interesses de publicitários e empresas patrocinadoras da publicação, e o terceiro motivo é o quão “preparado” está o público leitor daquela revista para aceitar as discussões e os movimentos de mudanças que ela abordar e propor.
Conforme a doutora em Comunicação Social explica, essa relação entre público leitor e revista funciona como retroalimentação, e os temas em voga na sociedade “influenciam” as revistas - porque seus funcionários não estão de fora da estrutura social - assim como as revistas também “influenciam” a sociedade.
“A revista pode abordar determinados temas e assuntos para acompanhar o público dela, mas se determinada discussão não avança na sociedade, ela não avança na mídia. Em alguns momentos a revista pode antecipar um assunto, mas até certo ponto. Talvez o público de uma revista aceite uma mulher trans no mês da visibilidade LGBT+ mas esse mesmo público não aceite essa mulher trans em outras épocas do ano”, explica Vanessa.
Ela ainda ressalta que ondas conservadoras surgem à medida que certas discussões ganham visibilidade e “aceitação” das pessoas. Dessa forma, os avanços também são acompanhados de retrocessos.
Pessoas com deficiência invisíveis para a moda

“As pessoas não estão abertas para ver quem está fora do padrão. E se elas não se acostumam a ver pessoas com deficiência na rua, essas pessoas ficarão em casa, e isso pode dar a impressão de que elas não existem. Mas elas existem e consomem roupas também.” argumenta Fatine Oliveira, publicitária, mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e autora do disbuga - plataforma voltada para compartilhar reflexões e experiências sobre acessibilidade, feminismo e inclusão.
Segundo a publicitária, a falta de representatividade para pessoas com deficiência na moda é resultado do capacitismo como um preconceito estrutural. “A moda é uma porta que te permite expressar a sua personalidade, mas também é um lugar para o padrão. No mercado é onde permanece o padrão. Nas revistas, mídias sociais, e televisão o que se encontra é o padrão. Uma pessoa branca, alta, magra e sem deficiência”, observa.
No entanto, mesmo com a falta de oportunidades para pessoas com deficiência em frente aos holofotes da mídia de moda, Fatine explica que a representatividade não é nula. De acordo com ela, diante da falta de oportunidades na mídia tradicional de moda, muitas mulheres com deficiência “encontram espaço nas mídias sociais” para estabelecer relação mais próxima com a moda e “para expressar suas personalidades através da moda”.
Além da falta de representatividade na grande mídia, a publicitária explica que o mercado para roupas inclusivas, feitas com adaptações para pessoas com deficiência, existe e tem muito potencial mas ainda é atendido somente por pequenas marcas e ateliês independentes.
Fatine também revela que as roupas adaptadas para pessoas com deficiência nem sempre são atrativas, seguindo as tendências e desejos de consumo do momento.
“As pessoas com deficiência também querem usar as peças do momento, com a estampa tendência, a cor tendência. O mercado da moda inclusiva nem sempre se atenta a fazer roupas adaptadas para pessoas com deficiência seguindo o visual do momento, eles se atentam somente às necessidades das adaptações. E isso não está errado, mas precisa ser feito de maneira que equilibre as necessidades e as tendências”, ressalta.
A moda do descaso com as mulheres gordas

“Me sinto representada [na moda] pelas coisas que eu faço, pelo que eu corri atrás de mudar o que me incomodava.” conta Flávia Durante, jornalista, DJ, empresária e idealizadora da Pop Plus feira de moda plus size que incentiva e fomenta marcas autorais brasileiras desse mercado.
A feira, que existe desde 2012, foi criada para suprir a necessidade do mercado plus size que grandes lojas de departamento e lojas de rua atendem de maneira insuficiente. “O Pop Plus começou para preencher essa lacuna da moda plus size autoral e criativa, porque sempre que a gente encontrava roupas plus size elas eram feitas para esconder o corpo, além de pouco atrativas visualmente. Os tamanhos maiores só tinham em roupas para mulheres mais velhas e até em sessões homens”, relata Flávia.
Ainda que comunidades de blogs plus size, influencers, pequenas marcas e ativistas tenham conquistado muito espaço e oportunidades para pessoas gordas na moda, Flávia percebe o descaso das grandes lojas de departamento com as mulheres gordas, visto que essas marcas não atendem de forma satisfatória as demandas de vestuário dessas consumidoras. “As marcas grandes não estão interessadas em investir nesse mercado”, afirma.
Para a DJ, as grandes marcas detêm ampla capacidade de reverter esse cenário de descaso, se houvesse tal vontade por parte dessas empresas.
“Se uma grande marca apoiasse pequenas iniciativas de moda plus size autoral, e inclusive o Pop Plus, ia melhorar e avançar muito mais essa mudança. Marcas como C&A, Riachuelo têm programas próprios de apoio a pequenas marcas autorais, mas não têm marcas plus size nesses programas de apoio deles”, aponta.
Para a empresária, a situação só irá mudar quando a gordofobia, que ela considera um problema estrutural e naturalizado na moda, for combatida na “raiz” desse setor: as instituições de ensino de moda.
“As faculdades e escolas de moda não ensinam a fazer roupas para tamanhos maiores. Muitos alunos reclamam comigo que não conseguem fazer TCC com peças acima do tamanho 42/44 porque eles não aprendem a fazer roupas para corpos gordos, não têm o ensino, não têm manequim... Tem que mudar toda essa estrutura para que mude por completo.”
Quanto à representação de mulheres gordas na moda em revistas, a jornalista destaca que percebe, com frequência, a hipersexualização e/ou a vitimização da mulher gorda nesse espaço.
“Acho que ainda colocam a gorda muito hipersexualizada. Sempre super maquiada, feminina, com roupas do estilo Pin Up. Difícil ter uma gorda na capa e que está com um look desconstruído, diferentão, minimalista ou moderno. Quando tem uma matéria, chamam a mulher gorda para falar de preconceito - sempre no sofrimento - ou no especial de moda plus size, mas, poxa, por que não põe a modelo gorda no lançamento de primavera-verão? Por que não chamar a mulher gorda para falar sobre moda, beleza, negócios?”, questiona.
Pessoas negras se inserem na moda, mas avanços ainda são necessários

“Hoje em dia eu acho que tem mais referências, mas quando eu era criança a gente não via [modelos negras e negros] nas passarelas, em revistas e publicidades e, quando tinha, o foco não era extamente neles”, observa Cristiane Marques, modelo, designer de moda e criadora de conteúdo sobre moda e beleza no Instagram.
Cris, que é modelo há dez anos e já desfilou na São Paulo Fashion Week, considera que a existência de mais oportunidades para negras e negros na moda se deve a pessoas que, no passado, contribuiram para abertura de possibilidades. “As oportunidades começaram a surgir por causa de pessoas que estavam antes no meio e abriram os caminhos. Eu acredito que as que vieram antes foram contribuindo para isso e quando um entrou, abriu espaço para outros. Hoje as portas estão um pouco mais abertas”,
A designer conta que, apesar de atualmente ter mais referências de negras e negros na moda, ainda sente que falta diversificação de oportunidades para pessoas negras dentro do ramo. Trabalhando como criadora de conteúdo de moda e beleza, foi convidada para cerca de sete lives, mas apenas em uma a pauta era carreira, maternidade, moda: todas as outras eram sobre racismo.
“Eu percebo que ainda faltam oportunidades para falarmos sobre outros assuntos. Sobre moda, beleza, clean beauty, porque não é só a mulher branca que pode falar sobre esses assuntos, a mulher negra também pode.”, defende.
No trabalho como modelo, a designer ainda enxerga problemáticas nos bastidores como maquiadores que não sabem maquiar pele negra e do lugar marcado que parece haver para modelos negras em ensaios de marcas e desfiles.
“Hoje em dia temos mais produtos de beleza para peles negras, mas muitos maquiadores são despreparados para maquiar as nossas peles, não sabem fazer maquiagens que ficam boas na gente. Geralmente, você vê mais modelos negras em ensaios de roupas afro, mas em ensaios de roupas sociais você não vê mulheres negras, principalmente com cabelo com tranças, dreads... Ensaios de roupas de casamento você também não vê modelos negras, ainda mais como noivas”, analisa Cris.
Espaço para diversidade se abre após escândalos
A alta costura parece ter percebido a necessidade de mudanças há pouco tempo, da forma mais difícil, após boicotes decorrentes de acusações de apropriação cultural, sexismo, racismo, homofobia, xenofobia entre outros preconceitos e crimes.
Recentemente, um dos escândalos mais comentados foi o de racismo pelo grupo Gucci. Em 2019, a grife italiana foi acusada por vender um suéter com estampa que remete ao “blackface” - prática racista originada no século XIX, em que atores brancos pintavam o rosto de preto para interpretar negros de forma caricata e ridícula, em espetáculos de humor.
Após as acusações e repreensões pela comunidade negra, consumidores e profissionais do meio, a marca se desculpou e anunciou o investimento de mais de dez milhões de dólares no programa “Gucci Changemakers”, para promover mudanças estruturais no mercado da moda.

Mas há mudanças em curso. Na coleção de Primavera de 2019, a Dolce & Gabbana, que já apresentava modelos de tamanhos maiores em desfiles anteriores, saiu na frente das concorrentes, sendo a primeira marca de luxo a oferecer peças no tamanho 52. Para a publicidade da campanha de Outono/Inverno 2019/2020, a Balenciaga clicou casais românticos reais de diferentes gêneros e orientações sexuais, pelas ruas de Paris. Em 2020, a Gucci Beauty contratou a modelo britânica Ellie Goldstein, que tem síndrome de Down, para ser o rosto da divulgação do novo rímel da marca.
Já a Chanel anunciou, em julho de 2019, a criação do cargo de Diretora de Diversidade e Inclusão, que foi concedido a Fiona Pargeter, que ocupava um cargo voltado para a diversidade quando era executiva do banco suíço UBS. Seguindo os passos da grife francesa, em fevereiro de 2020 a Prada anunciou a criação de um “Conselho de Diversidade e Inclusão”, para que pessoas negras tenham voz ativa dentro da empresa e no mundo da moda como um todo, além de fomentar a busca por novos talentos diversos.
Mais que incluir, integrar
Mesmo com ações internas e externas que visam promover a diversidade, as mudanças no setor ainda acontecem de maneira eventual, sem constância, o que reforça o pensamento de que essas práticas não são atitudes genuínas das marcas mas, sim, tentativas de manter os negócios lucrando, longe de escândalos e até como ferramenta de promoção dos produtos, ao se apoiarem nesses discursos.
Idealizadora do RELab Criativo, um centro de pesquisa educacional com foco em moda plural e sustentabilidade, Luiza Tamashiro analisa que a “relutância” das empresas da moda em conceder oportunidades a outros corpos, diferentes etnias, gêneros e pessoas com deficiência ocorre porque há inclusão das pessoas, mas não integração.
“A questão principal está na palavra “incluir”, porque significa criar um grupo para que as pessoas que estão às margens se sintam pertencentes. Mas se sentir pertencente não é reconhecer que se pertence. Enquanto que “integrar” é, de fato, proporcionar as ferramentas para que as pessoas invisibilizadas possam construir seu próprio caminho para buscarem essa integração. É sobre existência. Esse é o ponto de partida que a moda precisa caminhar, em ser um espaço de integração, a moda precisa integrar essas pessoas e não as incluir”.
Quem também aponta a necessidade de integração na moda para outros grupos é a comunicadora de moda Luiza Brasil, fundadora da plataforma mequetrefismos, em sua participação no episódio “Representatividade importa, pertencimento humaniza”, da TED Talks Brasil. Na gravação, Luiza apresenta um conceito que ela chama de pertencimento circular, que nada mais é do que a presença das pessoas negras na ocupação dos mais diversos cargos no setor da moda, dos cargos de entrada até os de liderança.
Para ilustrar o conceito, Luiza faz uso de uma metáfora: “Mais do que só ir para a festa, o pertencimento circular te convida para dançar, te leva pra pista de dança e, no final de tudo, você ainda tira os sapatos porque se sentiu muito acolhida pelos seus novos amigos”.
“A representatividade abre portas, mas o pertencimento é o tapete no hall de entrada para os sonhos e a vontade de criar novos espaços”. - Luiza Brasil.
Atitudes para mudanças concretas
Luiza Tamashiro considera que o primeiro passo para a existência da diversidade e representatividade na moda passa por uma profunda renovação da mentalidade do setor junto a ceder oportunidades para pessoas plurais.
“[Para que haja representatividade na moda é necessário] Uma desconstrução da mentalidade do mercado e de seus profissionais, consciência de classe, espaço para os vários profissionais plurais atuarem e trazerem seus olhares e aprendizados para romper com a mentalidade padrão. As pessoas precisam estar abertas e dispostas e entenderem que não podem continuar na mesma mentalidade se de fato querem ser mais plurais”, conclui Luiza Tamashiro.
Parabens pela materia muito boa eu aprendi muito mudando minha percepção sobre varias coisas.