O sapateiro que não tinha sapatos
- Bárbara Bento
- 13 de out. de 2021
- 3 min de leitura
Sapateiro comprou o primeiro calçado aos 12 anos com o primeiro salário

A profissão de sapateiro representa uma ironia do destino na vida de Adair Tavares, de 77 anos, que passou toda a infância andando descalço porque não tinha sequer um par de calçados.
Natural de Conceição do Mato Dentro, região central de Minas Gerais, o sapateiro conta que comprou o primeiro sapato aos 12 anos de idade quando trabalhava na casa de uma família abastada, logo que se mudou para Belo Horizonte. “Eu não tinha sapato quando morava na roça. Comprei o meu primeiro com 12 anos, com o dinheiro que juntei dos serviços que fazia. Antes disso eu só andava descalço, nunca tinha colocado um sapato no pé e levou tempo até eu me acostumar a andar de sapato e a andar no mesmo ritmo de quando andava descalço”, relembra.
Adair, que acumula quase 70 anos de profissão, conta que a prática do ofício iniciou ainda na infância. “Comecei como um faz tudo nas oficinas. Tudo que aparecia para fazer, eu fazia para ganhar uns trocadinhos. Eu varria a oficina, ajudava a descarregar e guardar os materiais. Fiquei muito amigo de um dos caras que trabalhavam lá e fui aprendendo o serviço. Tinha uma época que eu atendia mais clientes que os caras mais velhos que trabalhavam na oficina”.
Seu Adair conta que a escolha da profissão não foi motivada pela admiração e encantamento com o ofício, como costuma ser para outras pessoas. Segundo ele, a necessidade foi a grande razão que motivou a escolha e a profissão de sapateiro era a mais próxima de sua realidade. “Tudo parecia muito difícil e essa [profissão] era o que vinha mais fácil para mim. Eu tinha que trabalhar, então, escolhi seguir essa mesma”, conta.
Quando mais novo, pensava em ser engenheiro, mas estudar era algo inimaginável no contexto de vida humilde que tinha na roça. Além disso, Adair diz não saber se sentia genuína paixão pela profissão de engenheiro e nem se se sentiria realizado caso tivesse seguido tal carreira.
A oficina
Após cerca de trinta anos exercendo o ofício, em 1983, Adair abriu sua própria oficina, que realizava consertos em sapatos, bolsas e cintos, com funcionários que trabalhavam de carteira assinada, o que não só revela tempos de bonança na vida profissional do sapateiro, como também os “tempos de ouro” da profissão que hoje ele denomina como insuficiente para garantir total sobrevivência.
Segundo Adair, com o passar dos anos a oficina pouco a pouco perdeu a rentabilidade de anos anteriores. No fim dos anos 1990, ficou cada vez mais difícil mantê-la com a mesma estrutura de antes, já que o período foi marcado pelo processo de abertura comercial para importações. Até o fim da década de 80, o Brasil era adepto de políticas comerciais que priorizavam a valorização e crescimento da produção interna, dificultando a entrada de produtos estrangeiros no país.
Já no ano de 1990 teve início a reforma tarifária que diminuiu os impostos sobre as importações gradativamente ao longo dos anos. Durante a década, a política comercial do Brasil estabeleceu novas leis que favoreciam a importação de produtos, dentre elas a diminuição dos impostos sobre importações, a possibilidade de importar produtos sem concorrentes nacionais e o aumento no volume de importação pelas empresas. Políticas que impactaram o negócio de Adair bem como vários outros trabalhadores autônomos da moda e pequenos empresários do setor.
Aposentadoria
Adair permaneceu no comando da oficina até a virada do milênio, quando precisou se afastar do trabalho por recomendações médicas, em decorrência de um infarto e outros problemas de saúde. Diante da obrigação de aposentar, o sapateiro passou o negócio para o genro, a quem também passou o conhecimento que acumulou nos mais de sessenta anos de carreira.
Hoje, Adair atende clientes que buscam por consertos em sapatos, bolsas, cintos e carteiras, em uma lojinha localizada na rua José Flausino, n.º 65, no bairro Jardim Vitória, como forma de complementar a renda da aposentadoria. O terreno foi comprado há cerca de doze anos, com o dinheiro que lhe restou da oficina. O espaço se divide entre a recepção e os cômodos mais ao fundo, onde o sapateiro realiza os consertos de segunda a sexta-feira das 8h às 18h.

Apesar de quase 70 anos dedicados à profissão, o sapateiro não se considera uma pessoa realizada profissionalmente e mesmo expondo isso de forma serena, a expressão deixa escapar um sentimento de leve tristeza. “Não me sinto realizado. Não era isso que eu queria. Mas também eu nunca soube com certeza o que eu queria. Eu tinha vontade de ser engenheiro, mas também não sei se me sentiria realizado se tivesse sido um. Acho que é muito difícil seguir a profissão que a gente quer e se sentir realizado nela. Acho que poucas pessoas têm essa oportunidade”, reflete.
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